Meninas, trabalho doméstico e escola


O Fórum Nacional de Prevenção e Erradicação do Trabalho Infantil (FNPETI), com dados da Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios (Pnad) de 2014, realizou um levantamento estatístico com 174.468 crianças e adolescentes entre 5 e 17 anos ocupados no serviço doméstico no país. Nessa pesquisa mostrou-se que o trabalho infantil dentro de residências é, em geral, reservado às meninas, 94,2% das crianças. Entre elas, 73,4% são negras e 83%, além de trabalharem na casa de terceiros, realizam afazeres domésticos em sua própria casa.

As consequências do trabalho infantil doméstico são tanto físicas quanto emocionais: elas podem desenvolver lesões por esforço repetitivo, severas alergias por exposição a produtos químicos, risco de acidentes e mordidas de animais. Há também o risco de assédio sexual por parte dos patrões ou homens que habitem o local de trabalho.

Os serviços domésticos estão na vida de todas as meninas. É na idade do brincar que ocorre uma separação dos papéis entre homens e mulheres. As meninas tem contato com miniaturas de eletrodomésticos, bonecas, mini vassouras para limpar. Aos meninos, o quintal e as ruas, os joelhos sujos de terra, carrinhos e ferramentas.

Em pesquisa realizada pela Plan em 2013, retratou a divisão de tarefas domésticas em suas casas entre as meninas e meninos, evidenciando a discrepância entre a quantidade de tempo dedicado para tarefas entre os dois gêneros. A figura 1 mostra um pouco dessas diferenças. O tempo gasto para tarefas domésticas é retirado de tempo de estudo e lazer dessas meninas, o que pode prejudicar seu desenvolvimento educacional.

Em um trabalho desenvolvido na USP em 2011, mostrou-se que as meninas que têm essa rotina de trabalho doméstico acaba por ver a escola como um ambiente mais agradável, tratando os estudos como lazer já que o tempo de lazer lhes foi retirado pelas obrigações domésticas. Porém, segundo o FNPETI, trabalhando em jornadas tão longas, as meninas não conseguem dar continuidade aos estudos, começando um histórico de reprovações que culmina no abandono da escola antes mesmo do término do ensino fundamental.

Figura 2: Distribuição de tarefas entre meninos e meninas nas casas brasileiras. Fonte: Plan 2013.

No trabalho realizado pela professora Ana Lúcia Kassouf, do departamento de Economia, Administração e Sociologia, da Escola Superior de Agricultura “Luiz de Queiroz” (USP/ESALQ), e seus alunos do programa de doutorado em Economia Aplicada Marcos Garcias, Ida Bojicic Ono e Camila Rossi, integraram ao projeto PEP (Partnership for Economic Policy), os resultados analisados mostraram que o trabalho infantil, dentro ou fora de casa, atrapalha e diminui o desempenho das crianças na escola. “Nossas conclusões indicam que o trabalho doméstico, que muitas vezes não é contabilizado nas estatísticas sociais e não é considerado perigoso, deve ser incluído nas políticas de governo destinadas a combater o trabalho infantil”, ressaltou Ana.

“Na análise, monitorando diversos fatores relacionados às crianças, família e escola, ainda notamos que as crianças que trabalham, seja no domicílio ou no mercado, apresentam menor rendimento escolar, pois estão mais cansadas e sobrecarregadas”, ressaltou a professora.

Nos EUA há um cenário parecido, numa pesquisa realizada pela Universidade de Maryland entre adolescentes de 15 a 19 anos, mostrou-se que os meninos gastam em média 30 minutos ao dia em tarefas domésticas enquanto as meninas cerca de 45 minutos.

No passar dos anos o cenário não melhora para essas meninas, uma vez casadas, a responsabilidade do cuidado da casa será quase que exclusivamente delas. O IBGE em 2016 constatou que as mulheres dedicam, em média, 20,9 horas semanais aos cuidados com o lar, enquanto os homens dedicavam 11,1 horas semanais.

Além das tarefas domésticas o levantamento do IBGE mostrou que cerca de 25% da população em idade de trabalhar cuidou de outras pessoas em 2016. O percentual de mulheres (32,4%) que se dedicavam a cuidar de pessoas foi superior ao dos homens (21%).

A pesquisa mostrou que 49,6% das pessoas que receberam cuidados tinham entre zero e 5 anos de idade e 48,1% tinham entre 6 e 14 anos. O cuidado de idosos correspondeu a apenas 9% dos casos. Ou seja, a responsabilidade pelos cuidados dos filhos ainda é majoritariamente da mulher.

Na figura 2, podemos ver a distribuição atual das tarefas dentro das casas brasileiras divulgada pelo IBGE em 2017.

Figura 3: Distribuição das tarefas domésticas nos lares brasileiros. Fonte: G1

Desde criança as meninas são submetidas a uma carga maior de responsabilidades dentro de casa além de serem estimuladas com brincadeiras dedicadas às tarefas domésticas, por mais que isso possa trazer certo benefício no desenvolvimento da organização, outros fatores do desenvolvimento podem ser afetados. Com uma sobrecarga de tarefas, essas meninas podem não se dedicar tanto às atividades de lazer e escolar quanto deveriam. Durante toda sua vida serão cobradas nos quesitos de eficiência tanto ou mais quantos os homens no mercado de trabalho, mas estão acumulando duplas e triplas jornadas de trabalho. O quanto essa divisão injusta dos trabalhos domésticos pode estar atrapalhando o desenvolvimento intelectual dessas meninas e mulheres ao redor do mundo? Quanto a humanidade não poderia se beneficiar com mentes brilhantes que acabam presas dentro de casa a uma rotina de trabalhos domésticos?

O quadrinho “Era só pedir” traz o agravante de o quanto esses trabalhos domésticos são mais do que o ato, mas todo o esforço emocional que as mulheres carregam para manter um lar funcionando.

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