Era o nome de nosso sentinela. Vigiou a casa dos padres em Moma por mais de quinze anos, mesmo em épocas sem moradores. Tinha viva a história das pessoas que por ali passaram. Em meio seus cadernos trazia fotos e lembranças daqueles e daquelas que acompanhara nesta casa. Matava saudades simplesmente vendo imagens. Às vezes com suspiros, lamentava do vai e vêm dos habitantes, brancos e estrangeiros, que tampouco acostumara e já era tempo de voltar ao seu país. Mas concluía: “é assim mesmo a vida de missionários, não param”.
A doença que o levou a morte me fez entrar no sistema de saúde mais desumano que já conheci. Em Moma, “há hospital”, onde os doentes estão em tendas de lonas ao lado de um lindo prédio que iniciou sua reforma em 2008. O ministério da saúde ainda não liberou a migração dos doentes das precárias tendas para as novas estruturas por falta de instalações adequadas de água. É comum que pacientes cheguem até a emergência e as consultas com doenças graves e recebam paracetamol ou medicamentos coloridos, sem diagnóstico preciso. A maioria dos casos são encaminhados para cidade de Nampula que fica 210 Km. Mesmo as mulheres que necessitam de cesariana devem ser encaminhadas, pois em Moma não há sala de cirurgias. Há apenas um silencioso sofrimento com morte das mães com suas crianças.
Em Nampula, onde existe um hospital referência para todo norte do país, chegam doentes de vários distritos e províncias em busca de saúde. É mais uma estação desta via sacra. Lá existem poucos médicos especialistas. Chegamos até uma médica de Cuba, urologista. A única para todo o norte com esta especialidade. Quando conseguimos consulta, logo encaminhou internação do Cândido num imenso dormitório superlotado. Havia doentes por todo lado, alguns sentados em cadeiras, porque as camas estavam lotadas e outros deitados em colchões espalhados pelos corredores. Ali naquele calvário de dores e mau cheiro tivemos que deixar nosso amigo sentinela. Não havia outra solução. Fomos buscar vida e sentimos cheiro de morte em todo canto.
Ficou hospitalizado um mês, esperando que lhe fizessem ecografia total. A única máquina era disputada por multidões e ficou parada por uma semana em manutenção. Lá muitas vezes acompanhamos a cruz pesada do Cândido, embora nele não havia revolta e desespero. Logo que saiu o diagnóstico de câncer de bexiga, foi imediatamente liberado para voltar a Moma. Já não havia nada o que fazer. Restara o consolo de voltar a terra onde foi gerado para assim despedir-se. Desde sua chegada em casa, no seu leito sempre haviam vigias da familia que em silêncio contemplavam sua dor.
Depois de sua morte, fui procurar no dicionário qual o significado de Cândido: “inocente, puro”. É assim mesmo. Ele como tantos que conheci em Moçambique são inocentes e puros de coração, vivem na periferia das lógicas ocidentais que aprisionam pessoas e as colocam correndo na mesma direção.
Nenhuma força conseguira acorrentar nosso sentinela. Em meio a dor, paradoxalmente não perdera a serenidade. Morreu pobre e livre. Foi um bem aventurado. Já em vida, dividira seus bens. Ultimamente repetia que viera ao mundo sem nada e voltaria para casa do pai sem nada. Lembrei destas palavras quando fomos ao túmulo no terceiro dia plantar a cruz e flores. Como de costume, entre os cristãos, na madrugada se reúnem na casa do falecido e com orações caminham até o cemitério na certeza da ressurreição e do grão de trigo que morre e produz frutos. Neste dia ninguém mais chorou.
Pe. Maurício da Silva Jardim
Missionário em Moçambique
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